Por muitos anos o estrangeirismo esteve presente em produções nacionais. Mesmo nosso país tendo elementos culturais ricos, poucos games de mesa ou digitais eram vistos. Mas este cenário está mudando graças ao surgimento de jogos da cultura brasileira, que exploram nosso folclore e história.
No mercado brasileiro atual, diversas produções nacionais se baseiam não só em figuras folclóricas, como também na própria cultura afrodescendente, que faz parte de nossa herança histórica. Mais do que atividades lúdicas, elas se tornaram símbolos de representatividade para um um grupo que há séculos luta por igualdade.
O RPG “A Bandeira do Elefante e da Arara”, por exemplo, é uma das produções que mostra que sim, a cultura brasileira pode ser uma excelente fonte de inspiração. A obra se passa no Brasil Colonial, em pleno Século XVI e mostra as aventuras do holandês Gerard Van Oost, e o guerreiro africano Oludara.
Toda a dinâmica do RPG gira em torno da história no Brasil colonial e do nosso folclore, com uma narrativa detalhista ambientada na época. E o bestiário é uma verdadeira obra-prima no que diz respeito ao estudo e transmissão de lendas e criaturas do imaginário popular. Nele você encontrará, por exemplo, o Boitatá, a Caipora e até o Saci descritos com precisão.
Um fato curioso é que o autor dessa obra é o norte-americano Christopher Kastensmidt. Ele se debruçou por anos sobre essa série, que se tornou o livro de RPG. Para ele, a obra precisava ser lançada de maneira que deixasse não só brasileiros, mas pessoas de todo o mundo impressionadas.
“Eu não queria lançar de qualquer jeito. O mercado exige que você lance um produto nacional com qualidade internacional. Se não, chovem críticas”, disse Christopher em uma entrevista ao portal ‘Colecionador de Sacis’.
Mas essa não é a única obra que destaca todos os elementos culturais da nossa história e folclore. O jogo de cartas “Cafundó” também é um dos jogos da cultura brasileira que explora bem esses aspectos.
Trazendo lendas do imaginário popular, e ao mesmo tempo fatos históricos do Brasil, ele consegue mostrar de forma didática e lúdica toda a riqueza cultural do nosso país. Criado por André Estevez, Jonathas Joba e Pedro Ometto, ele tem uma dinâmica simples, mas ideal para faixa etária para o qual é indicado (jovens a partir de 14 anos de idade).
O grande objetivo desse jogo é reunir a maior quantidade de ouro. Para isso, os jogadores devem usar entidades para sabotar os inimigos, bem como repelir criaturas que possam atacá-los.
Produções de games nacionais
E quem acha que o desenvolvimento de jogos da cultura brasileira só é uma realidade entre o segmento de jogos de tabuleiro, carta e RPG, está enganado. Estúdios independentes já têm mirado nesse nicho que promete crescer cada vez mais nos próximos anos.
É o caso da desenvolvedora pernambucana Diorama Digital que, recentemente, lançou o trailer do game “Araní”. O enredo gira em torno da jornada de uma guerreira indígena Tribo do Sol, que precisa salvar seu povo da irá de um antigo poder mitológico. Para isso, ela terá que enfrentar não apenas uma legião de inimigos, mas embarcar em uma verdadeira jornada de auto-conhecimento.
Confira abaixo o trailer:
O game será lançado para PS4, Xbox One e PC e mesmo sem data de estréia definida, já é muito aguardado por um mar de fãs. E uma coisa muito bacana de se destacar nessa produção é o fato dela ter recebido o aporte de R$ 975 mil da Agência Nacional de Cinema (Ancine) para o seu desenvolvimento.
Isso também revela o envolvimento de entidades para estimular mais produções do gênero, que valorizem o a cultura brasileira de modo geral.
Confira abaixo outros games brasileiros que também exploram as raízes:
Além dos jogos
As produções geeks nacionais, com foco na nossa cultura, não ficam apenas no segmento de jogos. É possível encontrar projetos e outros tipos de produções que também exploram nossas raízes.
Um excelente exemplo é o projeto ‘Folclore BR: Uma nova visão’, que existe desde 2013 e é comandado pelo quadrinista Anderson Awvas. A iniciativa tem como principal objetivo mostrar novas maneiras de enxergarmos a cultura folclórica brasileira, e, ao mesmo tempo, explorar temas de relevância debatidos dentro da sociedade.
Mais do que isso, o autor também visa estudar e revelar seus resultados sobre histórias antigas e mitologias ameríndias e africanas, que fazem parte do nosso cerne. Relatos esses que, em sua maioria, foram apagados por conta da colonização e cristianização. Em entrevista para o Sintonia Geek, Anderson falou um pouco sobre a aceitação do seu projeto e o peso dele para o cenário de produções nacionais.
“Acredito que precisamos chamar mais a atenção para o tema e trazer o brasileiro comum e nossos costumes para dentro dos nossos projetos. Dar mais atenção para o conteúdo nacional em busca de valorizar o que fazemos para assim inspirar outros a fazerem mais”, afirmou o quadrinista.
“Vivemos buscando referências em todos os lugares e não sentimos falta do que não conhecemos, por isso precisamos fazer com que os veículos de mídia entendam que precisamos dar um determinado espaço para o conteúdo nacional para ajudar a fomentar a pesquisa e desenvolvimento cultural”, complementou.
Outra produção que também explora as raízes brasileiras, principalmente no que diz respeito à cultura africana trazida pelos escravos, é a Graphic Novel ‘Contos dos Orixá’, do quadrinista Hugo Canuto. A iniciativa nasceu em 2016, quando ele fez a arte “The Orixas” em honra aos 99 anos.
Após o lançamento dessa arte, o desenhista resolveu regressar à Bahia para se aprofundar nesse universo que, aos poucos, começa a ser mais explorado. Mais do que isso, na busca de honrar realmente essas raízes, reproduzindo-as com o máximo de fidelidade.
Para o desenvolvimento do projeto, muitas vezes Hugo buscou inspiração do continente africano, que está diretamente ligado ao Brasil na história trágica e de exploração dos escravos, que foram trazidos até o nosso país.
A produção ganhou o Brasil em 2017, após um financiamento coletivo em que contou com 850 apoiadores, levantando a quantia de mais de 40 mil reais.
Os obstáculos das produções nacionais
Mesmo com a quantidade de jogos da cultura brasileira sendo lançados, bem como outras produções, como os HQs, quem produz ainda enfrenta muitos obstáculos. Desafios esses que acabam minando as chances de muitas obras incríveis chegarem ao grande público.
Para Anderson, criador do Folclore BR, existe essa necessidade da grande mistura de culturas que há no Brasil ser estudada. Contudo, é preciso mostrar a demanda desse mercado para quem pode fomentá-lo.
O que podemos ver, infelizmente, é que mesmo dentro do meio geek e nerd ainda há preconceito em relação à nossa própria cultura. O foco parece estar sempre nas produções estrangeiras, que abordam a cultura europeia ou americana, e acabamos deixando de lado a riqueza que há em nossa história.
Muitos fãs da Marvel, por exemplo, vibraram com o filme Pantera Negra. A obra ganhou os holofotes por explorar a cultura africana de um jeito que Hollywood nunca tinha feito. Mais do que isso, que a Marvel não tinha tentado até então.
Mas dois questionamentos se erguem aqui. Por que a Marvel só foi tentar algo do gênero agora? E por que os fãs brasileiros não tratam as produções que abordam culturas ligadas à nossa da mesma maneira? A verdade é que precisamos incentivar as produções que foquem na cultura brasileira, afrodescendente, africana, indígena e folclórica e todas as demais culturas relacionadas à nossa história.
Somente por meio do aumento da demanda desses conteúdos que o próprio mercado começará a se modificar. E para isso precisamos de um esforço conjunto em várias frentes. Seja apoiando projetos nacionais ou que abordagem a nossa cultura, ou até participando de eventos que têm esse objetivo.
O incentivo através do conhecimento
Uma das formas de incentivar é conhecendo melhor o que está sendo produzido sobre a nossa cultura. Afinal, uma vez que conhecemos os elementos culturais que fazem parte da nossa história é que podemos lutar para que eles sejam difundidos. Por isso, o Sintonia Geek separou alguns projetos do gênero que buscam financiamento coletivo, e que podem te ajudar a explorar mais nossas raízes, confira:
Jogarta celebra a cultura nacional
Além desse compilado de projetos, você também pode conferir a 16ª edição do JOGARTA, evento de Curitiba/PR que visa promover atividades lúdicas para todas as idades. Nessa edição, o tema será “O Outro Lado da História”. Todas as atividades serão focadas em narrativas que dão destaque para negritude, africanidade e culturas tradicionais brasileiras.
Por conta disso, pela primeira vez, o evento será realizado em dois dias: 17 e 18 de novembro.
O idealizador do projeto, Mateus Buffone, ressalta que essa dinâmica visa justamente trazer um espaço maior para esse debate. No sábado, o foco será mais nas atividades lúdicas em si, enquanto no domingo serão realizadas mais oficinas e workshops.
No dia 17, serão 50 sessões de RPG; Área de boardgame com o apoio do projeto ‘Fora da Caixa’; Swordplay (luta de espadas) com os ‘Dragões da Noite’; Feirinha com estandes para os fãs geeks; Larps; Área de jogos eletrônicos autorais com apoio da PUC; Concurso de cosplay e muito mais.
Para fechar o dia, será promovida uma mesa redonda com os convidados: Luciano de Jesus, do Jornal Empoderado; Rafael Cruz, do RPGNoticias; Alan Silva, autor do jogo de narrativa compartilhada Narrativas Samurais; e Jorge Valpaços, do coletivo criativo Lampião Game Studio. No espaço, eles irão debater sobre a importância de trazer a temática sobre africanidade, culturas brasileiras e até mesmo preconceito para as produções.
Já no dia 18, o evento terá área de protótipos para RPGs e jogos de mesas. Inclusive, as vagas ainda estão abertas para quem quiser inscrever projetos e concorrer a premiações. Basta enviar e-mail para jogartacontato@gmail.com. Também irão rolar jogos em miniatura, oficinas e duas mesas redondas, uma com a temática Negritude e Mídia e outra sobre Futurismo.
Promover um evento dessa magnitude, com foco na cultura brasileira, africanidade e negritude também tem seus desafios, como destaca Mateus. “O primeiro grande desafio é fato de nós sermos uma associação sem fins lucrativos, que precisa buscar apoiadores a patrocinadores para um evento que gera muito capital social, mas, sem retorno financeiro propriamente dito. E outro desafio é o fato do tema em si não ser mainstream, e ainda apresentar certa resistência pela própria galera nerd. É justamente mostrar que testar narrativas não convencionais também é interessante”.
Nessa 16ª edição, além de toda a questão de abordar e incentivar o debate sobre as culturas brasileiras, a JOGARTA também está com uma campanha de Natal. Durante os dois dias de evento a associação convida os participantes a doarem brinquedos para serem encaminhados para alguns abrigos de menores.
Quem fizer a doação poderá acumular “Pontos de Experiência”, ou simplesmente “XPs” para trocar por brindes e premiações durante a programação. No dia do evento os participantes irão preencher fichas de personagem e terão missões para fazer em troca de “XPs”, sendo a maior delas a doação de brinquedos.
O evento está marcado para a Gibiteca de Curitiba, na Rua Presidente Carlos Cavalcanti, número 533, em Curitiba/PR. Confira mais informações e confirme a sua presença na página do evento no Facebook.
Os jogos da cultura brasileira só tendem a crescer no mercado, se houver o incentivo necessário. E cabe à comunidade geek e nerd como um todo fomentar esse crescimento.
Afinal, não se trata apenas de honrar as raízes brasileiras, mas, também, de levantar debates que precisam ganhar cada vez mais espaço, como a representatividade, para agregar uma sociedade mais igualitária.