“O Coringa”, de 2019, faturou duas estatuetas do Oscar e mais de um bilhão de dólares nos cinemas. A legião de fãs ao redor do mundo também saiu ganhando: são 2 horas que mesclam empolgação e tensão ao reconstruir um dos vilões mais clássicos da DC. Mas o filme deixou algumas perguntas no ar e ainda tem muita gente debatendo a cereja do bolo: afinal, qual é a doença do Coringa e como explicar o seu quadro clínico?
Para responder essas questões, nós conversamos com a Juliana Ferreira, psicóloga com mais de 15 anos de experiência e especialista em psicologia corporal e biodinâmica. Partes da entrevista foram direto para o nosso podcast, onde a Juliana nos explicou, por exemplo, que as risadas repentinas e descontroladas do Coringa são uma “descarga de tensão” e representam “uma manifestação estereotipada de uma angústia”.
Outra análise interessante é que o Coringa não se enquadra perfeitamente no perfil de um psicopata, pois ele tem consciência de cometer crimes ou atos socialmente ilícitos e reprováveis.
Como o assunto é super intrigante e queremos que você saiba tudo o que rolou, destacamos algumas outras partes da entrevista logo abaixo, que nos ajudam a entender um pouco mais do quadro psicológico do Arthur Fleck e por que ele se transformou no Coringa.
O que explica a doença do Coringa?
“Perdoe minhas risadas. Eu tenho uma condição.”
É com essas palavras, impressas em um cartão plastificado, que Arthur Fleck (interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix) se apresenta a quem se sente desconfortável com a sua presença. O cartão é simultaneamente uma tentativa de explicação e uma súplica por perdão e compreensão. É como se Arthur vivesse com o rabo entre as pernas.
E a Juliana esclareceu que sua transformação no Coringa tem muita relação com o transtorno narcisista da mãe dele e as emoções reprimidas que ele nunca pode expressar, especialmente a raiva e a tristeza.
Mas a mãe dele não é única causa dos problemas. Um isolamento social mais amplo, assim como o abandono e a falta de apoio psicológico também ajudam a entender o desenvolvimento do Coringa.
O homem por trás da maquiagem
Então, aos poucos, somando fatores históricos, individuais, familiares e sociais mais amplos, Arthur deixa de existir e se reconhece e aceita como Coringa—uma transformação que vai muito além da aparência.
E é justamente aqui que está o brilhantismo da nova versão do Coringa: o filme nos apresenta as motivações, os pensamentos e os sentimentos de Arthur e, assim, oferece uma releitura sociológica e psicológica da construção de um dos personagens mais icônicos dos quadrinhos. Ele nos conta a história do homem por trás da maquiagem.
Do silêncio à brutalidade e da tragédia à comédia
O longa nos explica um pouco sobre os traumas, as injustiças e os abusos a que Arthur foi submetido ao longo de sua vida. Sem ter ninguém em quem confiar e sendo constantemente agredido, humilhado e manipulado, Arthur se sente perdido, incapaz, afogado em solidão e silêncio de corpo e alma.
No entanto, esse silêncio se transforma em brutalidade ao passo que Arthur assume a identidade do “Coringa” e, conforme o próprio filme transparece, muda o gênero de sua vida, passando da tragédia para a comédia.
A doença do coringa é, então, individual ou social?
As duas premiações no Oscar, a bilheteria bilionária e a estupenda taxa de lucro de cerca de 94% são evidências dos méritos do Coringa de 2019. Mas talvez o mais impressionante seja algo não mensurável: a tempestade de pensamentos e emoções que o filme desperta em quem acompanha a transformação do solitário e sofrido Arthur no empoderado e descontrolado Coringa.
Ao nos contar essa versão da história, o diretor Todd Phillips humanizou um personagem que é tradicionalmente visto como “o vilão da história”. Não que a vida sofrida de Arthur justifique os crimes e as barbaridades que ele passa a cometer. Mas será que a desumanidade individual de Arthur não é reflexo acumulado de infinitas outras desumanidades coletivas e socialmente difundidas?
No todo, talvez Coringa (2019) seja um retrato de um indivíduo e de uma sociedade, ambos doentes.